quinta-feira, 26 de março de 2009

Iconoclasmo


CÂNTICO NEGRO

José Régio (1901 – 1969)

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

domingo, 8 de março de 2009

Iconoclasmo



O politicamente correto é, antes de tudo, um chato!

Um chato, antes de tudo, o politicamente correto é!


sábado, 7 de março de 2009

Minhas Comidinhas


Depressão é uma
Bom, deixa pra lá...

Mas convenhamos: tem dias que não dá...
São aqueles em que nada, nada dá certo.
E se é um domingo, está frio e chovendo, aí é pior.
Ruim mesmo é quando junta tudo isso com: noite mal dormida, falta de papel higiênico de manhã cedo, pasta de dentes naquele finalzinho quando, muito bem espremido, o tubo rende mais ou menos 1/3 de mm3 de pasta, o pó de café acabou e o leite azedou, mas só percebemos isso quando ele coagula enquanto o esquentamos.

Dias assim - o frio, o céu cinzento e a pouca luminosidade - tiram qualquer inspiração culinária e só me fazem pensar em neve, masmorras e cientistas malucos fazendo experiências aterrorizantes em presos políticos inocentes e indefesos.
Ocasião ideal para um prato russo:

Rôskovo©™

1 ou 2 ovos
1 colher de chá de margarina
restos de arroz cozido (se possível com mais de três dias na geladeira)
cebolinha picada a gosto (com ambiguidade e sem trema)
1 colher de sopa de cebola picada (ou não
1)
1 colher de sopa de tomate picado, sem sementes (ou não)
1 colher de sopa de parmesão e/ou queijo prato picado miudinho (ou não)
1 colher de sopa de presunto e/ou linguiça “sem trema” calabresa picadinhos (ou não)

Numa frigideira, ou panela pequena, aqueço a margarina até ela dourar ligeiramente. Se nesse dia minha veia purista ou minimalista não estiver ativa (ver nota 1), junto os itens extras, menos o queijo, que deve ser o último a ser unido ao conteúdo da panela, e refogo até ficar tudo no ponto desejado. Então, junto o arroz e misturo bem, deixando ele absorver os aromas e esquentar bem. Depois, coloco o(s) ovo(s) mal2 batido(s) com uma pitada de sal. Por último, o(s) queijo(s). Misturo. Descuidadamente jogo a cebolinha e misturo mais um pouco, desligo o fogo e vou pra sala saborear o resultado.


Rituais de consumo

Rôskovo deve ser degustado na mesma panela ou frigideira em que foi feito. Sempre! Isto é obrigatório!
Eu costumo sentar no sofá da sala e proteger as pernas com uma almofada (e um pano pra proteger a almofada, senão minha mulher me mata!) e coloco a frigideira sobre ela.

De preferência uso uma colher de sopa: bocados maiores.

Rôskovo deve ser consumido enquanto se assiste televisão. Programas dominicais vespertinos são os ideais. Ou, aproveitando a atmosfera do dia, assistindo um filme trash (D, se possível).

Eu penso que qualquer acompanhamento que não seja um copo d'água fere frontalmente o espírito de que se deve estar imbuído para apreciar devidamente a iguaria.

A limpeza de talheres e panelas será feita sempre no dia seguinte. À noite.


Variante

Há uma variante do Rôskovo: Kárnovo©™.

Os procedimentos são os mesmos que para o Rôskovo, mas substituo o arroz por restos de carne moída feita em dias anteriores. Também substituo a cebolinha por salsa. Os rituais de consumo são os mesmos.

Sei que os puristas vão torcer o nariz, mas neste caso não aceito quaisquer críticas, pois trata-se de adaptação minha, que não pretende substituir nem remeter-se ao Rôskovo original. È criação destinada apenas a aproveitar a simplicidade russa em um prato mais substancioso e com igual facilidade de preparo.


Notas

1 Os puristas são unânimes em salientar que o verdadeiro Rôskovo é feito apenas com os quatro primeiros ingredientes. Os minimalistas vão mais além, declarando que em sua origem o prato era preparado apenas com arroz e ovo e que a versão com margarina (alguns usam banha de porco) e cebolinha seria uma aculturação brasileira. Quando opto pela versão minimalista, o filme (ver Rituais) deve ser algo no gênero terror.

2 Os princípios filosóficos que nortearam a criação do Rôskovo exigem que ele seja preparado com o menor esforço possível. Talvez esteja aí uma justificativa para os argumentos puristas.


©™ Rôskovo, copyright 2006, TM 2007, by RCM

©™ Kárnovo, copyright e TM 2009, by RMJ